sábado, 27 de novembro de 2010

Ele...

Era uma tarde ensolarada. Perfeita pra uma caminhada ao redor do lago, sozinha, a pensar na vida. Ou melhor, não pensar em nada. Simplesmente sentir. Provar de um contato com a natureza: o vento, a grama, a água, o sol. Os quatro elementos se fundindo enquanto relaxaria ouvindo o som dos pássaros e admirando quem por ela passasse.

Mas foi num pulo que parou de sonhar. O projeto da caminhada relaxante teria de esperar. Afinal, o trabalho se acumulou e se não desse conta do que ficara, viraria um bolo de coisas a fazer e que nem poderia comê-lo pra dar fim... Espreguiçou-se e sentou-se diante de sua escrivaninha: por onde começar?

Resolveu, então, mudar um pouco o ambiente pra tentar facilitar o trabalho. Acendeu um incenso de camomila, ligou o som e pôs o cd “Músicas para relaxar” e colocou uma xícara de café sobre a mesa. “Melhor não”, pensou. “Dizem que café dá mais ansiedade”. Substituiu o café por um chá de frutas secas que prometia tranqüilidade. Não era tão bom quanto a sensação da cafeína, mas tentaria enganar o corpo.

Pegou a primeira pilha de papéis: provas bimestrais da quinta série. Bocejou ao pensar que essa a primeira de dez pilhas de provas a corrigir durante essa noite. Não dormiria tão cedo (se dormisse, claro!). Na terceira prova, o chá já havia acabado. Ansiosa, remexeu-se e decidiu por abrir aquele vinho que esperava a vinda da irmã no feriado. “Compro outro depois.” Sacou a rolha e encheu a taça: “acho que vou corrigir mais feliz.”

Por volta da décima quinta prova, o cd travou. “Droga de rádio.” Como já estava quase na metade da taça (já???), mudou de ritmo: Raul. Calma... Raul pra corrigir provas? É. Raul. Sorriu e se deixou suspirar. Mas, Raul pra corrigir provas? É, as provas foram perdendo o sentido. Seus pensamentos divagavam. Numa relação de alteridade, deixou de ser a si mesma pra ser além do que sentia. Suspirou mais uma vez.

Olhou ao redor e viu a solidão, chamando-a pelo nome. Há tanto tempo eram companheiras! Sorriam uma pra outra e se acalentavam num misto de prazer e dúvida. Era feliz, pois não? Um arrepio percorreu-lhe e não soube identificar sua precisão. Era feliz? Era... Feliz!?

Lembrou-se da época da faculdade: uma menina cheia de sonhos e utopias. A realidade mostrou-se fria e dissimulada. Notou que precisava de um encontro: um encontro consigo mesma. E passou dias sem falar com alguém. Quando voltou à falsa sensação de liberdade, conheceu aquele que alimentaria seus devaneios. Um amor intenso que a fez perder o prumo. Abandonou-se inteiramente às sensações conflituosas que a massacravam. Chorou, sorriu, viveu. E com a mesa intensidade com que veio, foi.

Decidira-se por amar a si mesma, a começar por seu trabalho. Dedicou-se aos estudos integralmente. Forjou sua metodologia, fundiu sua alma à Educação e tinha a certeza: melhor não poderia acontecer. Em pouco tempo, tornou-se a professora mais bem quista da região e trabalhava na melhor escola da cidade. Foi morar sozinha, na ânsia de se realizar. Pós graduou-se. Seus alunos lhe inspiravam felicidade. Não havia necessidade de nada mais. A não ser... Era feliz?

Durante alguns anos, acomodara-se na situação de não se envolver sentimentalmente. Havia sido essa decisão que lhe mostrara o quanto lhe dava prazer o magistério. Com breves romances, ninguém lhe parecia suficiente. Exigia-se de si mesma e do outro. Flores, jantares, cinema, presentes. Queria mais. Um mais que não estava ali. Um mais que esperava sentir, tocar, viver.

Um dia, um de seus romances lhe disse que ficaria sozinha, pois não tinha a capacidade de evoluir sentimentalmente. Agora, essas palavras faziam sentido. Faziam jus à personalidade intrinsecamente enjaulada. Pensara que se o outro não era suficiente, é porque ela não estava sendo complacente. O que significava que insuficiente era ela. A cada tremor que sentia diante de um abraço, acreditava ter de se afastar, pois mais tremores viriam, vontades, anseios e medos.

Veio-lhe, então, a imagem dele. Conhecera-o há duas semanas num bar em que fora com as amigas. Sorriso amigável. Olhos brilhantes e muita pretensão. Enquanto conversavam, ele a tocava levemente no braço e lhe sorria. Sentiu o tremor. Sentiu-se incapaz de causar atração num homem como ele: independente, inteligente, lindo e carinhoso. Foi como se seu veneno percorresse seu próprio corpo. Disseram-lhe, uma vez, que isso aconteceria. Talvez aquele fosse o momento.

Sentiu-se insegura. E foi embora. E ele nem tentou impedi-la.

Voltou à normalidade da sua rotina. Uma semana depois, encontrou-o na saída do supermercado. Cumprimentou-a com o mesmo sorriso de quando se conheceram. O tremor, mais uma vez. Desconsertada, disse que estava com pressa e precisava ir à escola. Ele lhe desejou um bom trabalho.

Como ousava não sair de seus pensamentos? Sempre conseguira manter-se fiel à sua escolha. Mas, naquele instante, sua doce amiga solidão lhe olhava com acusação. O Raul já parecia distante. Irritada, levantou-se, tomou um banho morno e se arrumou. Nada lhe ficava bem. “Gorda”, resmungava. Até que optou por um vestido antigo, mas que adorava e a fazia sentir-se bem. Pegou a bolsa, as chaves do carro e saiu. Ao chegar na garagem, respirou fundo e decidiu que iria caminhando. As provas que esperassem. Estava começando a anoitecer.

Iria à faculdade buscar Clarice. Nada como uma leitura existencialista pra lhe colocar de volta no lugar. Na biblioteca, cruzou com ele. Estática, sorriu amarelo e disse: “oi”. Ele olhou em seus olhos e respondeu: “que surpresa te encontrar. O que veio buscar?”  Com receio de demonstrar seu momento inseguro, com altivez, afirmou: “Clarice.”

“E qual o seu livro preferido dela?” Conversaram durante um tempo, até que lhe avisaram que a biblioteca iria fechar. “Nem vi a hora passar. Está tarde e estou a pé. Preciso ir”, disse ela. “Posso te acompanhar?” Relutante, aceitou.

Não era a caminhada que gostaria de fazer ao redor do lago para relaxar, mas foi o início da longa caminhada que se sucedeu com ele.

Ele que lhe contou sobre sua profissão, sobre seus sonhos e projetos. Sobre sua paixão por leitura e Tarantino. Por Zeca Baleiro e Tanghetto. Ele que se confessou encantado com seu sorriso e seu jeito de falar. Ele que lhe causa tremor a cada olhar, a cada forma de incentivá-la a ser melhor, a cada sorriso e a cada jeito de lhe falar o quanto é teimosa.

A teimosia que lhe trouxe ele. Ele que lhe devolveu o idealismo. Ele que a forçou a libertar seus sentimentos. Ele...

2 comentários:

  1. Melosidade, Rafa! Parece coisa de apaixonada... Eca! hahahahahaha

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  2. Muito bom seu texto!
    Puxa, seria ótimo conversar com você.
    Poderia me ajudar, quem sabe... bj

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